Conto de Walter Flex, do livro “Peregrino entre dois mundos”- adap. G.
Suwelack
“Duas mulheres, uma anciã e uma jovem viúva, estão sentadas em um quarto, na
penumbra.
Seus vestidos de luto fazem com que dos seus rostos e mãos emane uma pálida
claridade.
As mãos da jovem seguram o retrato do marido que acaba de perder a vida em um
acidente.
Tinham-no enterrado na manhã daquele dia.
Por muito tempo as duas mulheres ficaram sentadas, sem palavras e sem lágrimas.
Finalmente a anciã tira das mãos da neta o retrato do marido e diz em voz baixa:
– Filha, ouve o que quero dizer-te.
A jovem não responde , mas a anciã começa a falar;
– Quando Deus me deu o primeiro filho, aconteceu que ele ficou doente e eu,
sentada à noite ao seu lado, com uma mão no berço adormeci. Tive um sonho muito
estranho: detrás de uma cortina longa e densa saiu um anjo escuro e aproximou-se
do berço, querendo levar meu filho. Estendi logo as mãos sobre o berço e gritei:
– Não , Morte, Não te deixo levar meu filho!
O anjo sorriu e disse:
– Não me chamo Morte, chamo-me Vida ! Precisarei levar o teu filho. Ou preferes
trocar? Queres este em lugar do bebê!
Erguendo ele a cortina , saiu de lá um menino bonito e forte, de pele clara, olhos
azuis e cabelos louros em caracóis. Mas a mim era estranho e gritei:
– Não, não o quero ! Antes mata-me.
– Ninguém pode matar – replicou o anjo. – Precisas concordar com a troca ! Ou
preferes este?
O menino desapareceu e em seu lugar apareceu um jovem.
– Toma este! Vê como é belo, seus membros bem proporcionados, corpo e alma
com forças vibrantes.
– Não, Não! – gritei outra vez.
E o anjo disse:
– Mas este amarás com certeza.
E mostrou-me a imagem de umhomem de barba escura, bronzeado pelo sol e pelos
ventos.
– Não – voltei a gritar – nunca o amarei! Vou odiá-lo!
– Mas este aqui – o anjo continuou a argumentar comigo: era um velho de ombros
largos e cabelos grisalhos.
– Não, não, não ! Jamais trocarei. Vai embora e não toques no meu filhinho!
O anjo sorriu outra vez, dizendo:
– Certamente irás trocar e serás feliz. Vida e Morte são uma coisa só. A morte não
existe.
Assim dizendo, desapareceu.
Acordei trêmula, ao lado do berço do meu filho que estava dormindo tranquilamente.
Os anos passaram e eu fui trocando: o bebê pelo menino, o menino pelo jovem, o
jovem pelo homem, e o homem pelo velho. E fui me lembrando de cada um como o
tinha visto no sonho. O grisalho, tu o conheces: é meu filho, teu pai!
A anciã se calou. E a jovem viúva ergueu o retrato do marido, dizendo:
– Mas isso aqui não é troca, é roubo!
– Espera – disse a anciã – ainda não terminei.
Na noite seguinte o sonho se repetiu. Ví outra vez o menino, o jovem, o homem e o
velho e não quis saber nada deles. Mas, depois de mostrar- me tudo como na noite
anterior, o anjo disse:
– Até aqui era só por brincadeira. Agora precisas aceitar uma troca bem mais difícil:
aceita este em troca!
– Mas não vejo ninguém ! – exclamei.
– Não podes vê-lo – replicou o anjo.
– Mas também não ouço ninguém.
– Pois ele não se deixa ouvir – respondeu o anjo.
Eu tateava ao redor: – ninguém está aqui.
E o anjo disse: – tão pouco podes palpá-lo.
– Então zombas de mim?
– Não, tu não me entendes. Vou falar de outra maneira.Tu me darias os teus olhos
em troca do filho?
– Leva-os! – gritei.
Logo caiu uma escuridão profunda sobre mim, mas ouvia ainda a respiração
tranquila do meu filho, como se fosse uma brisa noturna deliciosa.
– Mas não é ainda suficiente – disse o anjo. – Dá-me a tua audição.
– Leva-a! – ordenei, e peguei o corpinho de meu filho com as duas mãos, beijando-o
ternamente.
– Mas ainda não é suficiente – exigiu o anjo novamente – dá-me todos os seus
sentidos.
– Leva-os todos! – gritei – e afundei no nada.
Onde está meu filho? Onde?
– Podes crer, ele vive. O que desaparece dos sentidos, nem porisso está morto. A
morte não existe! Deus criou só a vida. Entendes agora?
A estas palavras do anjo, acordei.
Muitas vezes tenho meditado sobre o que o anjo disse, e paulatinamente comecei a
compreender.
Somos servos dos nossos sentidos. Mas Deus, como Senhor dos mil sentidos,
consegue transformar o que amamos, mil vezes.
São transformações que não nos permite ver, nem ouvir, nem apalpar. É porisso que
falamos da morte. Mas a morte não existe. A vida rouba, e dá sem cessar. Atrás da
porta já espera uma outra formação, um outro ser. Se soubermos isto, qualquer
sofrimento poderá transformar-se em alegria antecipada!
A anciã calou-se.
Depois de algúm tempo a jovem viúva repousou a cabeça nas mãos da velha,
perguntando:
– Quem te ensinou tudo isso, amada avó?
– A vida, minha filha, a vida …
– Uma lágrima caiu sobre a cabeça da jovem, e a anciã acrescentou: – e a morte!”